Em torno da questão da identidade



O sujeito não é algo imutável, mas sim um trabalho constante de construção, 
procurando integrar três contradições essenciais: 
a relação entre o dito e o não-dito, entre o diálogo livre e o constrangido 
e entre o discurso interior e o exterior (p. 520).


A partir, principalmente, da formulação teórica do conceito de identidade por Erving Goffman, o professor português de estudos sociais José Manuel de Oliveira Mendes fixa algumas noções fundamentais e as aplica ao universo português.

Em primeiro lugar, é necessário fixar que identidade é o que define um sujeito, atribuindo-lhe um papel dentro da sociedade em que está inserido, ao mesmo tempo em que modela esse mesmo sujeito, por agregar os processos que produzem a subjetivação. E que essas duas facetas são construídas no e pelo discurso. Essa noção de identidade vem do teórico da cultura Stuart Hall, que a utiliza para discutir as transformações sociais diretamente ligadas ao fenômeno da globalização. 

Nestes tempos de desmantelamento das fronteiras nacionais a questão da identidade pode nos ajudar a entender as novas possibilidades de subjetivação que são capazes de desconstruir a noção patriarcal de identidade una e completa.  O contato mais intenso com várias outras culturas põe em jogo o papel do outro no processo de construção da subjetividade, ou, como Goffman salienta, subjetividades. Pois o indivíduo da modernidade tardia está sempre em conflito interior, sempre reformulando a si diante das realidades flutuantes de um espaço de convívios sociais cada vez mais fluído e mutante. 

Nomeando as duas facetas da identidade para depreender a multiplicidade da subjetividade em nossos dias, Goffman traz os conceitos de identidade(s) social(s) e identidade(s) pessoal(s). As identidades sociais partem de categorias sociais vastas a que o indivíduo pode pertencer de forma a se sentir parte de um grupo (um setor dentro do todo da comunidade a que o indivíduo entende pertencer). As identidades individuais, por seu turno, dizem respeito às marcas específicas (muitas delas biológicas) de cada indivíduo e que o distinguem como ser único, cuja biografia é nova e irrepetível.

Tendo Calhoun (1995) como base, o professor José Manuel distingue, ainda, as identidades sociais primárias e secundárias. As primeiras dizem respeito às relações sociais que se dão diretamente, ou seja, entre pessoas que efetivamente convivem e interagem umas com as outras. Seu sexo, família, amigos, local de trabalho, vizinhança irão determinar tanto a sua forma de se perceber quanto a maneira das outras pessoas te classificar. Já as segundas denominam as relações sociais indiretas, ou seja, a partir de contatos que se dão de forma abstrata, no plano geral. A etnia em que nasceu, a região em que vive, a religião a qual é adepto, a nação a que pertence, a classe social em que se insere, a profissão que pratica também determinam a forma como você se denomina e é denominado pelos outros, mesmo que o todo do conjunto seja inapreensível.

Essa noção de identidades sociais secundárias está afim ao conceito de comunidade imaginada de Benedict Anderson (1991), no seu estudo a cerca da questão do nacionalismo. Uma nação seria imaginada porque seus membros jamais poderiam se conhecer em sua totalidade. Mesmo nos menores países, as pessoas vivem uma vida inteira sem conseguir cruzar com todos os demais cidadãos. É a partir da sua imaginação que essa totalidade, unidade nacional, é construída. 

Hall (2002) também retoma o termo de Anderson para salientar que é no discurso que a identidade é formada. “Uma cultura nacional é um discurso”, ele diz, “um modo de construir sentidos que influencia e organiza tanto nossas ações quanto a concepção que temos de nós mesmos” (p. 50). Por meio da linguagem, as identidades vão se reafirmando dentro da sociedade e vão orientando a relação do indivíduo com outros discursos identitários. Sobre isso, Dufour (s.d.) percebe bem o papel da educação nesse processo, como instituição (seja escolar ou religiosa) produtora e modeladora de sujeitos. “No centro dos discursos do sujeito é colocada, portanto, uma figura ou mais seres discursivos – diabo, demônios – nos quais ele crê como se fossem reais: seres que diante do caos garantem ao sujeito uma permanência, uma origem, um fim, uma ordem” (p. 3). A identidade, em Dufour, é articulada sempre em relação ao outro lacaniano a que o professor José Manuel irá recorrer para pensar a identidade narrativa.

No levantamento das identidades que orientam a(s) subjetividade(s) e interferem nas relações sociais, a noção de identidade narrativa vai aparecer como termo que dá conta das reflexões sobre identidade desenvolvidas por estruturalistas como Mikhail Bakhtin e Tzvetan Todorov. O sujeito seria um espaço aberto ocupado por vozes múltiplas provenientes da sua interação com o outro, decisivo inclusive no seu diálogo interno permanente. O que se complica ao relembrarmos de concepção de identidade discutida por Figueiredo (2005): a da identidade individual particular, que o iluminismo propagou a partir do ideal de autenticidade. “A ideia de originalidade extrapola a noção de identidade para uma ideia mais coletiva, tomando uma feição que está na origem do nacionalismo moderno, [...] pois passa a se estender àqueles que transmitem a cultura, dos quais se exige fidelidade à sua própria cultura” (p. 190).

E é exatamente essa concepção de identidade que está em xeque na discussão que o professor José Manuel traz a respeito das subjetividades descentralizadas, heterogêneas e múltiplas. Com a globalização, e o neoliberalismo que a representa a nível ideológico, há a proliferação de referentes circulantes que se chocam com o referente nacional. O que resulta desse choque são subjetividades plurais, parciais e temporárias. O que alguns teóricos chamam de crise do sujeito é exatamente essa identidade resultante que nos ajuda a entender melhor o impacto do neoliberalismo sobre os indivíduos e as novas e fragmentárias ideações sobre si e sobre o outro.

Indicação bibliográfica:
MENDES, José Manuel Oliveira. “O desafio das identidades”. In: SANTOS, Boaventura de Sousa (org.). A globalização e as ciências sociais. São Paulo: Cortex, 2002. p. 503-40.

Referências:
ANDERSON, Benedict. Imagined communities. Londres: Verso, 1991.
BAKHTIN, Mikhail. The dialogic imagination. Austin: University of Texas Press, 1994.
CALHOUN, Craig. Critical social theory. Oxford: Blackwell, 1995.
DUFOUR, Dany-Robert. “Os extravios do indivíduo sujeito”. artigo on line, s.d. Disponível em: www.cfh.ufsc.br/~wfil/dufour.htm
FIGUEIREDO, Eurídice. “Identidade nacional e identidade cultural”. In: Conceitos de literatura e cultura. Niterói/Juiz de Fora: EdUFF/Editora UFJF, 2005.
GOFFMAN, Erving. Stigma: notes on the management of spoiled indentity. Nova York: Simon and Schuster, 1963. entre outros textos.
HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.
TODOROV, Tzvetan. Mikhail Bakhtine, lê príncipe dialogique. Écrits du cercle de Bakhtine. Paris: Seuil, 1981.


Um comentário:

  1. Gostei muito deste blog! Seus textos me ajudaram bastante em minha pesquisa. Sucesso! Aguardo retorno ao email que te enviei.

    Patricia Andrade

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