Relações intersemióticas entre cinema e literatura




O professor Sérgio Sousa (Universidade do Minho) publica a sua tese de doutorado sobre as relações entre literatura e cinema conservando sua estrutura original, o que dá a esse texto fundamental dos estudos de literatura e cinema desenvolvidos em língua portuguesa a dimensão também de exemplo de organização e distribuição de uma monografia acadêmica. Sua dedicatória e agradecimentos, por exemplo, são bem escritos e tocantes.

Tomando a literatura comparada como ponto de partida, Sousa discorrerá sobre diversas maneiras de se relacionar cinema e literatura e colocará em diálogo reflexões de teóricos da literatura, do cinema e de outras vertentes das humanidades. Interessado na noção de processo de tradução intersemiótica sugerida por Jakobson, Sousa investigará o fenômeno da adaptação cinematográfica de obras literárias como tradução interartística (na primeira parte do livro) e o fenômeno da recepção literária do cinema, como tradução de elementos específicos da linguagem cinematográfica para algumas vertentes literárias modernas e contemporâneas (na segunda parte).

Ao abordar o fenômeno da adaptação, Sousa atualiza a discussão em torno da fidelidade a fim de evidenciar dois preconceitos que ainda pairam sobre os estudos comparados de literatura e cinema. O primeiro nasce de um desacordo entre literatura e cinema gerado por alguns amantes de literatura, que buscam o rememorar da experiência de leitura na experiência audiovisual. Esses leitores/espectadores interessados na transposição intersemiótica enquanto processo de tradução literal do texto-fonte acabam por engendrar uma comparação equivocada porque pautada na égide de um filme adaptado como reprodução absoluta do texto-fonte e, por isso, acabam tomando todo desvio (infidelidade) como digno de censura. O segundo advém da comparação, na linha de Bazin, interessada em encontrar no filme adaptado equivalências cinematográficas a recursos literários caracterizadores do texto-fonte. A procura dessas equivalências não é negativa em si, mas pode levar o comparador a valorizar o filme adaptado apenas conforme as suas soluções de equivalência, desconsiderando (e às vezes censurando) toda expressão de originalidade e de distorção crítica do original.

O propósito e interesse da comparação entre cinema e literatura, no caso das adaptações, está, sim, segundo Sousa, em evidenciar a leitura específica que o realizador faz da obra-referência e a maneira como o filme, enquanto obra de arte própria, dialoga com seu gênero, com sua época e com seu público. Bem entendido, um filme adaptado, por mais fiel que se pretenda, não substitui o livro-fonte, antes estabelece com ele um diálogo heurístico, semelhante às discussões interpretativas em contexto de sala de aula. Adota-se, por isso, a noção de “fidelidade plural”, mais flexível, aberta e dinâmica, que respalda as escolhas do realizador, em sua busca por tornar a história mais adequada ao novo sistema linguístico (o cinematográfico) e a suas próprias preocupações temáticas e estéticas, sem desmerecer gratuitamente as infidelidades. Sousa acaba por concluir que é no âmbito da infidelidade, e não da fidelidade como insistira Bazin, que reside o interesse de se estudar uma adaptação cinematográfica de obra literária, no sentido de tornar perceptível o modo como o texto-fonte abriu caminho para “transfigurações múltiplas” e como as especificidades da linguagem cinematográfica (e do estilo do autor de cinema) permitiram o retratamento estético e artístico de determinado conteúdo ficcional.

Já ao abordar a questão da recepção literária do cinema, Sousa discute como as influências entre cinema e literatura constituem um fenômeno de mão dupla (de confluência e interação dialógica interartística). Assim como a literatura serviu de fonte ao cinema desde o princípio, o advento do cinema marcou grandemente a literatura, não apenas na apropriação de temas do cinema por obras literárias, mas também na transposição para o plano estético-discursivo literário dos processos típicos da linguagem cinematográfica. Vertentes literárias como o romance behaviourista, a lost generation, o Surrealismo, o romance neorrealista e a nouveau roman procuraram renovar as técnicas de narração literárias inspirados em técnicas de cinema com o objetivo de construir uma arte romanesca mais ligada à vida presente e mais consonante com o tempo e ritmo da vida moderna. Adotou-se, por exemplo, um narrador semelhante à câmera de filmar, que procura mostrar personagens e ambientes sem explicá-los; a segmentação do espaço em planos, não necessariamente costurados lógica e sequencialmente pelo narrador; a descrição de cenas semelhante ao enquadrar da câmera e o organizar da montagem fílmica, com seus recursos de focalização, iluminação, movimento e disposição; etc. Para descrever como se dá essa tradução formal, Sousa acaba por relacionar e explicar, nessa segunda parte do livro, uma série de recursos da linguagem cinematográfica de uma maneira bastante acessível a um pesquisador de literatura comparada interessado em se aproximar dos estudos de literatura e cinema.

Por discutir com profundidade teórica e clareza metodológica questões fundamentais para se pensar comparativamente cinema e literatura, esse livro é pedra de toque indispensável aos estudiosos do assunto oriundos das comunidades lusófonas. Para finalizar, cito a definição de adaptação apresentada por Sousa: "Em termos puramente técnico-funcionais, definiríamos o fenómeno da adaptaçaõ cinematográfica como um tipo de tradução baseado numa prática derivativa intersemiótica. Dito de outra forma: trata-se da transmutação estético-semiótica efectuada no âmbito de matérias expressivas heterogéneas, sendo, por essa razão, de natureza inter-artística, transestética ou, como diria Imanol Zumalde, centrífuga por oposição às derivações centrípetas ou intra-artísticas" (p. 25).


SOUSA, Sérgio Paulo Guimarães de. Relações intersemióticas entre o cinema e a literatura. A adaptação cinematográfica e a recepção literária do cinema. Minho: Centro de Estudos Humanísticos da Universidade do Minho, 2001. (Colecção Hespérides, Literatura, 13).