O fazer científico



Na nova configuração internacional que se esboça, em meio à crise, 
abre-se a possibilidade de uma maior abertura, já que o momento é de 
mudança de paradigmas. Isto é, dos escaninhos, em termos de conhecimento, 
que são as circunscrições pelas quais aprendemos a pensar o mundo

Benjamin Abdala Junior




Herança é uma maneira de se entender o conhecimento. Quando uma pessoa transmite à outra aquilo que aprendeu com sua experiência de vida permite que essa outra pessoa agregue rapidamente novos saberes aos seus próprios. Isso torna possível que cada indivíduo não precise experimentar cada experiência para conhecê-la. No limite, é possível dizer que a cada geração a humanidade conhece um pouquinho mais sobre o mundo e sobre si mesma. Que a cada geração se torna capaz de fazer coisas mais complexas e facilitadoras de seu viver cotidiano. O que entendemos por tecnologia fundamenta-se nesse princípio.

A Ciência surge no contexto da cosmovisão europeia como uma reunião lógica e palpável dos conhecimentos adquiridos por homens de engenho, ou seja, pessoas cognitivamente mais capazes que a média da população. Os cientistas são tradicionalmente vistos como as pessoas mais inteligentes de sua geração. Fazer ciência de certa forma nasce da vaidade individual de se mostrar inteligente, de se mostrar capaz de descobertas novas a partir do estudo sistemático das descobertas de seus antecessores. A pessoa que decide ser cientista, ou estudioso, de profissão deve estar consciente disso.

Mas deve também estar consciente de que essa cosmovisão europeia a muito já ruiu e o que se entende por fazer ciência acompanha as transformações das mentalidades e de outra forma não se sustentaria como prática contemporânea. Para fazer entender o que é a comunidade acadêmica de hoje retomaremos aqui as reflexões de Boaventura de Sousa Santos sobre a presente situação das ciências no seu conjunto.

A aula magna dada pelo professor Boaventura de Sousa Santos no início do ano letivo de 1985 (ano em que eu nasci) na Universidade de Coimbra e transformada em livro em 1987 foi o texto que escolhi como a aula inaugural por excelência. Uma escolha bastante pessoal e feita primeiro porque está em minha língua, segundo porque o contexto português é o contexto que escolhi a muito como objeto principal de estudos e terceiro porque seu discurso acadêmico se aproxima imensamente dos discursos que circulam na comunidade acadêmica em que me inseri, ele próprio advindo das ciências humanas. Além disso, ele escolhe para primeira lição aos ingressantes ao espaço universitário (acadêmico) uma discussão sobre o que se produz na Universidade atual. Resenharei aqui o que me parece válido para o trabalho científico ainda hoje. Mas acrescento também o link de uma aula introdutória dada por ele em 2012.

Hoje em dia as ciências são como sombras, deixaram de ser verdades comprovadas para ser incertezas cruzadas. Com o fim da hegemonia de uma certa ordem científica portadora de respostas definitivas segundo a lógica, ciências naturais e ciências sociais estão se aproximando e as humanidades tem finalmente a oportunidade de sair de seu lugar periférico dentro da Academia. Não devemos abandonar os conhecimentos científicos até agora adquiridos, mas precisamos retirá-lo de seu pedestal frente aos demais saberes humanos, advindos de outros espaços sociais.  É hora de encontrar uma metodologia lógica e ensinável que admita sua incapacidade de chegar à verdade e permita um avanço em direção ao entendimento do mundo mais democrático, despido dos preconceitos gerados pelo imperialismo e pelo mercantilismo difundidos pela cosmovisão eurocêntrica e que, sejamos francos, ainda coloniza o mundo contemporâneo. 

A primeira saída dada por Sousa é formular perguntas simples e buscar respostas variadas e no cruzamento dessas respostas quem sabe encontrar uma conclusão mais honesta e menos egocêntrica. Não buscar mais as leis da natureza, as leis da vida, porque elas não existem, perceber, isso sim, que conhecer significa dividir e classificar para depois poder determinar relações sistemáticas entre o que se separou, relações provisórias a ser confrontadas dialogicamente com as conclusões de outros cientistas e de outras pessoas não cientistas.

Dividir, mas sem esquecer que a totalidade do real não se reduz à soma das partes em que a dividimos para observar e medir. Como humanos somos incapazes de ver mais que um reflexo da realidade. Cabe ao cientista desmascarar os reflexos hegemônicos, ser capaz de traçar novas imagens do real, fazer espelhos de novos materiais. E isso só se consegue com outras formas de chegar ao conhecimento, um conhecimento compreensivo e íntimo que não nos separe mas nos una pessoalmente ao que estudamos. Um conhecimento que seja construído na interdisciplinaridade, assumindo a realidade complexa da ciência.  Que a separação sujeito/objeto seja alterada pela noção de objetividade, por que é que eu preciso conhecer isso?

Em sua atual aventura científica, o professor Boaventura foi buscar respostas na sua ideia de epistemologias do sul, sua proposta com o Projeto Alice é que os herdeiros privilegiados da dominação imperial, colonial e mercantil sejam capazes de penetrar a toca do coelho e ir além de seu mundo, que se construiu na base de certezas e da superioridade frente aos outros. Desse modo ele acredita que as epistemologias do norte, lugar de onde ele fala, sejam capazes de aprender dialogicamente com os saberes de resistência dos povos e indivíduos até hoje subalternizados e sub-humanizados pelos processos históricos do poder e da acumulação de riquezas. Em outras palavras, precisamos aprender a fazer ciência no dialogismo, colocando-nos como um dois dois entes que devem ser ativos (e igualmente relevantes) no processo de comunicação.


Indicação bibliográfica:
SANTOS, Boaventura de Sousa. Um discurso sobre as ciências. 7. ed. Porto: Edições Afrontamento, 1987.

Obs: Outra importante obra do autor

SANTOS, Boaventura de Sousa. Pela mão de Alice: o social e o político na pós-modernidade. 10. ed. São Paulo: Cortez, 2005.






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