Narrativa literária e narrativa fílmica




A professora Rosário Bello (UAb) discute as relações entre cinema e literatura e evidencia suas similaridades e diferenças por meio da análise de três versões fílmicas da novela Amor de Perdição de Camilo Castelo Branco: realizadas por George Pallu, António Lopes Ribeiro e Manoel de Oliveira. Adotando uma perspectiva comparatista de fundamento narratológico e semiológico, cujos princípios e procedimentos são explicados na 1ª Parte do trabalho, não apenas demonstra as relações de intertextualidade que se estabelecem entre os quatro textos, como apresenta uma densa e original interpretação de cada um deles, em suas especificidades, na 2ª Parte.

Na versão editorial dessa que é a sua tese de doutorado, acrescenta-se um prefácio escrito pelo professor Vítor Aguiar e Silva (seu orientador) que explica o conceito de tradução intersemiótica formulado por Roman Jakobson no célebre ensaio "Aspectos linguísticos da tradução" (1959)* e que concluí, sobre a adaptação interartística: "toda tradução, tanto interlinguística como intersemiótica, narcotiza, elide, transforma, potencia e recria formas e significados do texto-fonte; toda a tradução, como qualquer acto hermenêutico, é parcelar e parcial, inscrevendo-se numa cadeia de semiose em princípio intérmina. A tradução total e definitiva, como a hermenêutica total e definitiva, é uma utopia e um pesadelo".

Destacamos aqui, deste livro fundamental do campo de investigação que intersecciona literatura e cinema, algumas conclusões salientadas pela autora:

1. O ponto de encontro mais fecundo das duas artes é a propriedade narrativa de cada uma enquanto forma de expressão artística estreitamente dependente do fluxo temporal para expor uma sequência causal de acontecimentos e ideias. Ambas manifestam a percepção do fluxo temporal como fenômeno de transformação permanente, mais alongado e subjetivado, por exemplo, que o fluxo temporal do teatro. A isso eu acrescentaria o caráter retornável que o cinema e a literatura compartilham, como artes da era da reprodutibilidade técnica (Walter Benjamin)*, e que não existe no teatro ou na narrativa oral, cuja potência está no caráter único e irrepetível da performance presencial. Quando uma câmera capta uma performance de teatro ou de declamação uma problemática ligada à temporalidade logo se instaura, porque há uma distância temporal inevitável entre o material reproduzido na tela e seu espectador. Além disso, entre o material reproduzido na tela e o espectador estará sempre o espectro do sujeito que recortou o momento reproduzido e, por ventura, o alterou num processo de montagem.

2. O potencial narrativo da literatura e do cinema não se limita à capacidade de ambas de contar histórias, mas no revelar uma experiência de temporalidade subjetivado de um narrador/autor implícito que se faz sujeito daquelas palavras ou daqueles recortes audiovisuais. Ambas revelam uma particular leitura da realidade (seja empírica ou ficcional), como específico olhar, do qual emerge(m) o(s) sentido(s), manifestado(s) na unidade e inter-relação dos seus diversos elementos constituintes. Sendo o tempo o lugar do acontecimento, a significação narrativa assume particular pertinência, ao ponto de se poder dizer que não há tempo sem significado nem significado (perceptível) fora do tempo.

3. A adaptação cinematográfica de uma obra literária é um fenômeno que, por um lado, propõe (e quer compartilhar) uma específica leitura do texto-fonte, reveladora de como o realizador (e demais pessoas envolvidas no processo criativo) interpretaram aquele texto, interpretação que se manifesta no conjunto de opções tomadas ao longo do processo de criação cinematográfica; por outro, reelabora um novo objeto artístico pleno, que não dialoga apenas com seu texto-fonte, mas também com sua época, com seu público, com seu gênero cinematográfico, com o repertório intelectual e artístico de seu realizador e equipe, com as anteriores adaptações do mesmo texto-fonte etc.

4. A adaptação cinematográfica é um processo que contém uma espécie de promessa implícita: a de responder, com maior explicitude e de modo pessoal, ao desejo de concretude que a recepção da obra literária provoca, enquanto manifestação e simultaneamente proposta de partilha de uma experiência. O leitor literário não necessita do cinema para realizar o trabalho de “visualização interior” que o texto sugere (de dar "concretude" imaginativa às experiências que o texto codifica verbalmente), mas dificilmente resiste à tentação de o verificar através do cinema. O espectador-leitor já tem uma noção do que vai (ou do que quer) ver na tela, e nisso está a razão de muitas vezes se sentir desapontado. Talvez por se preocupar com essa relação pré-estabelecida entre espectador e filme, muitos realizadores acabem por adotar certa seriedade com relação ao texto-fonte, buscando fidelidade e equivalências, sobretudo quando o livro tem o peso cultural de um Amor de Perdição.


BELLO, Maria do Rosário Leitão Lupi. Narrativa literária e narrativa fílmica: o caso de Amor de Perdição. 2. ed. Coimbra: Fundação Calouste Gulbenkian e Fundação para a Ciência e a Tecnologia (FCG-FCT), 2008. (Textos Universitários de Ciências Sociais e Humanas).