Práxis do cinema




Noël Burch é um teórico, crítico e cineasta estadunidense, envolvido com a revista Cahiers du cinéma e a Nouvelle Vague desde seus primeiros anos. Tornou-se nome de destaque da teoria do cinema devido a sua célebre redefinição da noção de decupagem de André Bazin para aplicação em estudos de cinema americano e japonês. Este livro agrupa os principais pontos de sua teoria cinematográfica. Na apresentação dessa edição brasileira da Praxis du cinéma, o professor Ismail Xavier (ECA-USP) ressalta o especial interesse desse livro para quem se dedica ao cinema, apresentando dois motivos: pela “excelência no plano pedagógico” e pelo trabalho com propriedades materiais, técnicas e procedimentos específicos da prática cinematográfica, posto que Burch apresenta uma qualidade didática e uma pertinência com o seu objeto que não derivam de uma teorização aplicada impositivamente ao cinema, mas que nascem “da experiência de quem, conhecedor dos debates e das alternativas da produção, soube ser claro porque reconhecia muito bem a favor do que e contra o que escrevia ao compor sua introdução ao cinema”. Obra que ainda hoje é referência "ativa", Praxis du cinéma não só traz importantes conceitos teóricos como também uma série de análises pontuais que ensinam caminhos críticos interessantes.

Percebendo que o termo francês découpage (decupagem) dava conta de um processo cinematográfico que percebia, mas que não conseguia nomear em inglês, Burch o aproveitou para denominar o momento em que se faz as notas de filmagem (quando se determina, por exemplo, os planos e os cortes) que, a seu ver, não podia mais ser confundido com a etapa de criação do roteiro. Pensando nas características próprias da decupagem, ele formula algumas noções bastante úteis que dizem respeito ao espaço e ao tempo no filme. O espaço do filme se desdobra em dois espaços suscitados pelo recorte das imagens, um desses espaços é o que se vê na tela (o que foi captado pela câmera) e o outro é aquele que aponta para um universo maior em continuidade com o espaço da tela (que está sugerido lá, mesmo não sendo mostrado). Por sua fez, o tempo do filme não é o tempo natural, pois foi manipulado no processo de montagem para que os cortes não quebrassem a unidade e a coerência do filme, sobre este ponto levanta as técnicas ensinadas por Eisenstein, como a montagem por analogia, por contraste, segundo a sequencialidade, entre outras.

Depois de trazer essas noções que considera básicas, o autor discute as questões de seu interesse. A primeira delas é o som no cinema. Interessa-lhe salientar como o som dialoga com as imagens em movimento, partindo do princípio de que ele tem o mesmo poder sugestivo de significados que a imagem e, por isso, contribui para a composição de uma ideia que pode concordar ou discordar (dialogando) com o que é visto.

A próxima questão é a noção de acaso ligada ao movimento em que o filme está inserido.  Percebe o filme de vanguarda como “obra aberta” e em contraste com o cinema clássico enxergado como “obra fechada” (sagrada e intocável). A “obra aberta” se fia de uma “brusca interrupção, em um mundo totalmente artificial de um universo de contingências mais ou menos ‘naturais’ que a priori lhe é inteiramente estranho”, está sempre pronta a suscitar novas interpretações diante do olhar (sempre novo e sempre único) do espectador ou do crítico.

Na sequência, reflete sobre as estruturas de agressão que podem aparecer sobre a decupagem. Ao encarar novos espaços e tempos criados durante a filmagem (quando diferem dos previstos pela decupagem), o realizador se vê diante de um certo mal estar que pode causar a “desorientação” diante do filme, seja por conta de uma agressão pelo conteúdo, de uma agressão ótica (mal estar causado pela vista) ou de uma agressão por quebrar tabus, o filme aparece assim como uma obra viva, que seu autor nem sempre consegue controlar.


Sobre a questão da montagem, no que se refere à plástica da imagem, a coloca no centro da discussão para pensar como ela pode ser melhor trabalhada dentro de uma teoria cinematográfica. Burch utiliza os estudos sobre o reflexo do vidro, “reflexo do cenário ambiente que se superpõe à imagem da partida”, para tentar entender qual a diferença entre a forma como uma pessoa vê o mundo natural e como ela vê o mundo representado no ecrã. Ao olhar para uma imagem destorcida por um vidro, conseguimos facilmente enxergar dois planos (imagem distorcida/sem distorção), entendendo sua diferença. “É apenas por um esforço inconsciente da mente (seleção) e do olho (foco) que chegamos a diferenciar as duas imagens superpostas e a eliminar o que não nos interessa”.

“Na tela, porém, tal justaposição saltaria aos olhos, pois o olho que olha para tela vê tudo ao mesmo tempo e atribui a todas as formas e a todas as linhas uma importância plástica igual (enquanto que chega a não ver uma cabeça que tape um quarto dessa mesma tela!)”, como “o ‘olhar’ é uma função da mente e o ‘ver’ é uma função do olho”, só que “diante da tela de cinema (como diante de um quadro ou fotografia) a função ‘olhar’ não comanda mais a função ‘ver’, como acontece na vida real: a seletividade do ‘olhar’ não afeta absolutamente a não-seletividade do ‘ver’”. Todavia, isso é condicionado pela distância que se mantém da tela, se ficarmos muito próximos dela, por exemplo, a função do ‘olhar’ perde essa força, comprometendo o envolvimento do espectador com o filme.

Burch diz que essa plástica da imagem cinematográfica deve ser levada em conta durante a montagem de um filme. É necessário traçar uma distância ideal da tela e a partir dela criar o foco (o ponto de vista) a partir do qual se quer mostrar a história, pois uma boa montagem é articulada em torno das oposições entre o conteúdo dinâmico dos planos e das oposições entre os tratamentos dos quadros para cumprir bem a função da mente na decodificação do conteúdo da imagem.

Sobre a questão da autonomia do cinema, Burch argumenta que, por ser o nosso ‘olhar’, a câmera ganha uma total autonomia enquanto veículo narrativo ou ação e, por isso, ela trabalha melhor quando não se tenta recriar o espaço do teatro, mas quando a montagem faz um ‘balé’ entre os personagens e a câmera que os vê falar. Burch percebe que está na câmera e em seus deslocamentos o grande trunfo da linguagem cinematográfica, que, para ele, não se torna menos específica, nem menos própria quando o filme é, por exemplo, acompanhado por um comentário em off que constitui seu elemento estrutural básico. Se lembrarmos do que vimos aqui sobre a relação entre som e imagem no cinema, podemos perceber que o autor é favorável ao trabalho conjunto entre sons e imagens para construção do universo fílmico, que só ganha em riqueza quando se faz uma constatação e diálogo entre voz em voz em off e imagens (alternando-se constantemente o estilo de narração direto e indireto), podendo o comentário ser uma boa ferramenta para se exprimir os pensamentos e sentimentos dos personagens vistos (o tempo todo) em ação.

Por fim, trabalha a grande questão dos críticos envolvidos com a política dos autores (a seu próprio modo, claro!), a questão da autoria no cinema, pensa sobre o tema e as diferenças encontradas entre os filmes de ficção e os de não ficção (ele próprio um documentarista). Depois de analisar alguns filmes, conclui que o estilo de um autor é o que aparece quando se faz uma relação hierárquica entre tema e forma, quando se investiga a formatação da decupagem (mise en forme) e as novidades que surgem na encenação durante a filmagem (mise en scène). Nesse sentido, tema e realização casam quando há uma boa adequação entre a temática do filme e o uso da linguagem cinematográfica escolhida. 

Justificando seu método de análise, Burch diz: “nosso objetivo é, de um lado, ‘fazer’ cinema e, de outro, ‘ver’ cinema, mas ‘ver’ como ‘nós o fazemos’, isto é, enquanto realidade sensível”. O autor apresenta sua teoria do cinema como técnica que se pretende objetiva e esclarecedora, “pretendemos simplesmente sugerir uma nova atitude de investigação, um novo espírito de abordagem das estruturas e materiais”.


Indicação bibliográfica:
BURCH, Noël. Práxis do cinema. Trad. Marcelle Pithon e Regina Machado. São Paulo: Perspectiva, 1992. (Debates).


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