O autor no cinema




O professor e crítico brasileiro de cinema Jean-Claude Bernardet traz em O autor no cinema uma discussão em torno história das teorias cinematográficas surgidas na França, e desenvolvidas também no Brasil, tomando a questão da autoria como motivo condutor.

Em princípio, a ideia de autor ligada a cinema surge como denominação do roteirista: em 1919 era pensando na significação literária do termo que Henri Diamant-Berger diria "o roteiro é o filme em si, ao autor do roteiro cabe a responsabilidade do filme". Na década de 1920, Jean Epstein chamaria os cineastas de "autores de cinema", referindo-se com clareza aos realizadores de filmes, sendo a partir desta noção de autor que a questão da autoria se enraizaria na tradição francesa. Em 1948, Alexandre Astruc publica o artigo "La caméra stylo" (a câmera-caneta) no qual defendia que o cinema estava virando uma nova linguagem, "libertando-se paulatinamente desta tirania do visual, da imagem pela imagem, do concreto, para se tornar uma escrita tão maleável e tão sutil como a da linguagem escrita, pois o cinema, como a literatura, antes de ser arte específica, é uma linguagem que pode expressar qualquer setor do pensamento".

De todo modo, é apenas na década de 1950 que o termo autor cria grande polêmica, ao ser inserido na proposta de crítica cinematográfica conhecida como política dos autores, que apareceu na revista Cahiers du Cinéma através dos artigos de jovens críticos (os jovens turcos) que mais tarde realizariam filmes dentro de um movimento próprio, a Nouvelle Vague. Dentre eles, encontramos nomes importantes do cinema mundial, como Jean Luc Gordard, François Truffaut, Eric Rohmer, Claude Chabrol e François Truchaud.

A novidade da política não era o fato de ligar ‘autor’ a ‘diretor’ (relação que já foi feita antes, como vimos), mas o pensar em cinema de autor olhando para a produção fílmica hollywoodiana e fazendo emergir como autor de cinema diretores de filmes comerciais, como era o caso de Alfred Hitchcock, John Ford e Orson Welles, equiparando-os a cineastas abertamente ligados ao cinema de arte, como Roberto Rossellini e Frederico Fellini. 

Outra novidade do trabalho dos jovens turcos foi cortar definitivamente o peso literário da palavra autor quando ela for usada no meio da produção de cinema. Godard enxerga a literatura como a grande inimiga do cinema de autor, e propõe um cinema livre da trama, para o qual importe apenas a mise en scène (ou seja, a colocação em cena, a encenação, a colocação de imagens, a direção, o material que sai da filmagem, o pensamento que emana do material audiovisual). Nesse sentido, "a política dos autores implica uma necessária desvalorização dos enredos", até mesmo daqueles que vem da literatura. 

E nesse ponto, os jovens turcos se chocaram com a questão da fidelidade, vista ainda de forma conservadora pela maior parte do público e dos críticos da época. Um exemplo disso foi o artigo "Le Paisir" de Godard ter sido recusado pelo então editor da revista, André Bazin. O também mentor de Godard teria barrado a publicação provavelmente pelo elogio que o jovem crítico fazia ao filme Le Paisir de Max Ophulus, que baseado em contos de Maupassant, não era fiel aos textos literários.

Outro ponto essencial da política foi a identificação do autor com aquele que diz “eu”, Truffaut enxergava no futuro do cinema um caráter mais individual e autobiográfico, com filmes que seriam uma confissão ou diário íntimo. Essa apologia do sujeito mostra como os jovens turcos negavam o cinema como arte coletiva, de equipe. Nessa perspectiva, entendiam que o autor cinematográfico poderia aparecer de três modos: como o realizador que elabora o roteiro e o argumento, dirige e monta o filme; como o realizador que além de ser roteirista e diretor também é produtor do próprio filme; e como realizador apenas – desde que o filme revele sua expressão pessoal.

A grande questão é como entender assim o cinema norte-americano, que estava longe de se apresentar como um diário íntimo, mas antes tinha intenções primordialmente comerciais. Os jovens turcos elaboram um método de análise dos filmes que consiste na localização do que está por detrás deles. Entenderiam por filme de autor, aquele que revelasse uma matriz, uma temática, uma moral, um termo-chave que emergissem do enredo (enxergado dessa forma, o enredo não precisa mais desaparecer) e mostram como o diretor interpretou o texto, como deu sua mão e se valeu do potencial da mise en scène para leva seu tema ao ecrã. O trabalho do crítico, nessa perspectiva, é evidenciar a matriz através de um trabalho de decantação que faz ver o arquefilme.

A busca pela matriz acaba se tornando a marca da política, ela aparecia como uma ideia mãe, como tema que perpassa todas as obras de um autor, sendo plantada por ele (ainda que não conscientemente, pois "a matriz não é uma meta que o autor visualizaria previamente e, conhecendo-a, poderia programar os meios de alcançá-la") e identificada pelo crítico durante a análise. "O que é mais importante para a política não é o filme em si, mas a sua inserção dentro de um sistema". Os jovens turcos veem o autor como uma unidade, recortam dos filmes o que contribui para essa unidade e deixam de lado todo o resto (mesmo que seja um filme inteiro ou, até mesmo, todo um período de produção). É trabalhando com dados biográficos e com a totalidade da obra que esses críticos vão olhar para cada filme, sempre preocupados em representar a obra de um autor como um todo coerente e uno.

Refletindo sobre as características da política dos autores francesa, Bernardet percebe que seu aspecto mais saliente é a permanência do universo religioso, talvez um dos grandes motivos da valorização de Hitchcock e da "culpabilidade intercambiável" vista como sua matriz, salientando a posição de eterna culpa e falta do homem em relação a Deus, ao mesmo tempo em que, por sua genialidade, esse diretor garante o retorno da noção romântica de autor associado a Criador, a Deus. Vendo-o como o criador em cinema, mais de uma vez se afirmou que "Hitchcock é cinema em cada coisa que faça".

Vale mencionar como a política dos autores foi recebida pela crítica americana, já que o que estava em jogo eram os seus filmes. O crítico estadunidense Andrew Sarris concorda com a posição de autoria preenchida pelo diretor, mas só considera autor de cinema o diretor que apresentar grande competência técnica e criativa, um estilo individual recorrente, e uma significação interior (glória máxima do cinema como arte) que permita mais de um nível de leitura do filme.

Em um segundo momento, Bernardet nos mostra que do mesmo modo que se deu na França, o termo "autor" apareceu nos textos de críticos de cinema brasileiros ora para designar o roteirista, ora o realizador e, por vezes, o produtor de um determinado filme. A posição de autoria foi, primeiramente, ligada à figura que o crítico identificava como o responsável pela qualidade artística do filme específico que estava analisando, por isso a mobilidade do título de autor não foi questionada de imediato. 

Encontramos essa mobilidade ainda na década de 1950, nos trabalhos de Rubem Biáfora, B.T. Duarte, Antônio Moniz Vianna e Francisco Luíz de Almeida Salles. Ainda que o termo autor aparecesse por vezes no trabalho desses críticos, nenhum deles se preocupou em defini-lo ou em contrapor sua noção de autor com a que aparecia nos jovens turcos, ainda que a influência da crítica francesa fosse visível quer pelo teor das análises quer pelas referências apontadas. 

Ainda nessa década, encontramos uma paridade entre o trabalho de um crítico brasileiro e o método da política, trata-se de Walter Hugo Khouri. Por estar interessado em evidenciar o estilo do cineasta ao analisar um filme, o trabalho de Khouri era muito semelhante ao dos jovens críticos franceses. Todavia, mesmo nele, a valorização do estilo não elevava o filme a uma obra de autor. Diferente de Khouri que não dedicava grande preocupação com política, Paulo Emílio Sales Gomes se colocava declaradamente contra ela, empregando a palavra autor sem fazer questão de atribuir-lhe algum peso para destacar a pouca relevância que via em tal distinção.

Na década de 1960, começaram a aparecer críticos mais preocupados com a questão da autoria, e mais engajados na política francesa. É o caso de Gustavo Dahl, que se dedicou à questão do autor seguindo o método dos jovens turcos. Todavia, ele não evitava empregar o termo autor ao roteirista, quando via nele o crédito pela qualidade do filme. Além disso, a posição ideológica também era diversa: enquanto os jovens turcos se relacionavam com os filmes através de uma perspectiva primordialmente religiosa, os críticos nacionais (inseridos nas concepções ideológicas que se manifestavam na intelectualidade brasileira de então) valoravam os filmes pelas preocupações políticas, históricas e sociais que eles eram capazes de suscitar.

É levando em conta essas preocupações, que Glauber Rocha "reformula" a política dos autores, expressando através dela a seguinte concepção: "se o cinema comercial é a tradição, o cinema de autor é a revolução". A noção de autor revolucionário legitimiza a posição do Cinema Novo, o autor de cinema seria, nesta perspectiva, aquele que produz livremente filmes que combatem o cinema comercial, que nascem de "uma câmera na mão e uma ideia na cabeça", nos quais o autor assume o papel de roteirista, diretor e produtor, sem interferências a sua expressão pessoal, e sem receio de denunciar os problemas de seu país. A condição principal para um cineasta ser autor é ser transgressor, por isso Glauber não coloca Hitchcock, Ford e Welles no seu elenco de autores, mas Méliès, Eisenstein (ignorado pelos jovens turcos), Buñuel, Russelini, Antonioni, Godard, Truffaut, entre outros. É preciso esclarecer, de todo modo, que a questão do autor não é primordial no trabalho de Glauber, ele não se detém a ela com a fixação dos jovens turcos.

Em um terceiro momento, refletindo sobre o termo autor que aparece em trabalhos feitos a partir da década de 1970, Bernardet percebe que a difusão que o termo ganha e sua bem aceita associação com o cineasta (principalmente, quando este realiza longas-metragens de ficção) fez com que a noção de autor de cinema sofresse um grande enfraquecimento. "O que o conceito ganhou em extensão, perdeu em profundidade; sua familiaridade, naturalidade, obviedade correspondem à sua perda em criatividade e poder de polêmica, tanto em nível de produção como de crítica". O principal motivo apontado para o declínio do autor é a dificuldade que os diretores de cinema autoral encontravam para distribuir seus filmes, por conta da preferência do público por filmes comerciais. O ano de 1968 é apontado, didaticamente, como o momento em que se deu o fim do cinema de autor tal qual falamos até agora, por conta do surgimento do cinema militante, que se opôs não só ao cinema "burguês" como também ao cinema autoral. 

Na década de 1980, é o próprio Godard quem dirá: "já está em tempo de passar a outra coisa". Como um dos propósitos do cinema militante é combater "a veneração cinéfila da mitologia dos grandes cineastas", atacando o sujeito e produzindo um cinema no qual mais importante que o nome do cineasta que fez o filme é o seu potencial de denúncia dos problemas políticos, econômicos e sociais de um determinado país ou época, ele serve de chave de explicação junto com o problema da distribuição.

Ainda que com uma repercussão menor, o cinema de autor, todavia, não morreu. O termo autor ainda aparece em textos críticos, como os de Pascal Bonitzer e Olivier Assayas, que valorizam a posição do autor e a mise en scène enquanto forma de pensamento, de expressão pessoal. Esses novos críticos entenderam a necessidade de se reformular a noção de "autor de filmes" e o método de análise da política, principalmente no que se refere a questão da unidade. O autor que surge nos novos trabalhos é sem dúvida um autor diferente do da política (já que na concepção dela era impossível falar de autor sem falar em unidade). Críticos como Bellour vão valorizar os filmes analisados não mais pela matriz, mas por sua própria superfície, o autor agora não é aquele que antecede o filme, dando-lhe a chave de leitura, mas emerge dele como uma instância abstrata , do mesmo modo como o espectador irá interessar enquanto "leitor" ideal para determinado filme, do mesmo modo sugerido ao longo da película. Assim, o autor de cinema vai sobrevivendo, "como uma referência que se põe e ao mesmo tempo se nega", e que ganha um impulso novo na ideia de um espectador que como ele está cada vez mais abstratizado, mais internalizado ao filme.


Indicação bibliográfica:
BERNARDET, Jean-Claude. O autor no cinema: a política dos autores - França, Brasil nos anos 50 e 60. São Paulo: Brasiliense/Edusp, 1994.

conferir também:
BERNARDET, Jean-Claude. "Mar de Rosas: um filme duvidoso ou Os filmes sobre". In: CARVALHO, Sérgio et al. Entrevista com Jean-Claude Bernardet e outras conversas. São Paulo: Expressão Popular, 2009, p. 133-135.