Pedra de Toque




Pedra de toque é uma opção terminológica muito pessoal. Ela orienta metodologicamente meus trajetos de leitura, que buscam uma certa coerência pelos meandros e malhas de autores e obras muito diversos que me têm interessado academicamente.

Já que é impossível ler tudo, e mesmo interiorizar tudo aquilo que efetivamente lemos, tracemos um roteiro de acesso à rede da nossa memória a partir de algumas obras-referência que permitam uma sequencialidade de estudos que vá do geral para o particular, do simples para o complexo, dos princípios para as ferramentas.

Essas obras-referência, como pedras de toque, são saberes delimitados e conscientes, a partir dos quais espero ser capaz de acessar os saberes difusos acumulados ao longo dos anos, como reminiscências úteis no momento de necessidade. Em outras palavras, as pedras de toque me auxiliam a encontrar elementos criativos e pessoais no momento de escrita de um novo trabalho acadêmico.

Mas, antes de mais nada, contarei como se deu meu contato com o termo pedra de toque e procurarei definir o que entendo como pedra de toque:


Título de um artigo de João Bénard da Costa, importante estudioso de cinema em Portugal, "Pedra de Toque" diz respeito a uma matriz da obra do cineasta Manoel de Oliveira: o eterno feminino. Cunhado pela escritora Agustina Bessa-Luís, o termo vem de Touchstone, personagem de As you like it de Shakespeare, e procura suscitar um olhar que vê para além do sentido da visão. 

Se não encontramos o título "Pedra de Toque" nas capas dos livros de Agustina nem nos pôsteres dos filmes de Oliveira foi por uma pequena má coincidência, pois dessa ideia nasceu o romance Terras do Risco, bem como sua adaptação fílmica, O convento. Oliveira havia pedido para Agustina escrever mais um romance para ele filmar (a parceria deles vem de longa data), daí surgiu o projeto Pedra de Toque. Mas como o livro demorava a ser concluído e ele queria começar as rodagens, pediu à Agustina que lhe resumisse a história e foi a partir desse resumo que ele elaborou o roteiro. Após a finalização das duas obras, que acabaram por ser desenvolvidas concomitante e separadamente, ambos optaram pela alteração do título. Felizmente, o artigo crítico de Costa não o deixou soterrado.

"A pedra de toque está onde menos se pensa", diz Agustina, no referido romance, acrescentando que "stone" pode significar "testículo" e, por isso, o nome do personagem nasceu de uma brincadeira jocosa feita pelo dramaturgo inglês. "Pedra de toque é, portanto, algo que se toca e que reflete uma tentação", arremata Oliveira, ao explicar o termo para Bénard da Costa, na sua interpretação de leitor-tradutor. Em sentido mais corrente, a pedra de toque é um material lítico rico em compostos silicosos, escuro, negro, usado para testar ligas de metais preciosos. É a pedra utilizada para se avaliar, o meio de avaliar, a pureza do ouro e do jaspe negro. Por isso, Costa concluí, ao pensar no eterno feminino em Oliveira, que "à pedra de toque revela-se sempre o mesmo metal", transformando a brincadeira de Shakespeare em termo técnico semelhante à matriz da Política dos autores, tema-chave que percorre a obra de um cineasta.

Por nossa vez, gostamos também de pensar o termo como nomeador dos textos-chave, das obras-referência que circunscrevem o lugar donde acessamos e pensamos o mundo. "Onde temos os pés e por onde circulam nossas cabeças". E é particular para cada indivíduo, ainda que todos estejamos inscritos em determinadas comunidades intelectuais. Nesse sentido, circunscreverei no blog meus diálogos intelectuais, ou melhor, minhas escolhas para o repertório acadêmico que conduz minhas investigações científicas.


Com isso em mente, cada página deste blog será fundamentada em pelo menos uma nossa pedra de toque, no sentido do amplo para o específico, a fim de traçar o nosso lugar no meio acadêmico a partir de livros que nos ajudaram a pensar e a construir esse nosso fazer científico.


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Indicação bibliográfica:
COSTA, João Bénard da. Pedra de toque: o dito 'eterno feminino' na obra de Manoel de Oliveira. In: MACHADO, Alvaro (org.). Manoel de Oliveira. Coleção Mostra Internacional de Cinema. São Paulo: Cosac Naify, 2005, p. 116-57. 

Dicionário Livre de Geociências, Dicionário Priberam


"Pedra de toque", de Anthony de Mello (conto)