Os Passos em Volta (1963), de Herberto Helder

 



Quem pode compreender?
A performance cínica do narrador de “Lugar, lugares”


Sonâmbula ou muito conscientemente, o narrador do conto “Lugar, lugares” de Herberto Helder uma das angustiantes narrativas de Os Passos em Volta conduz o leitor por um universo ao mesmo tempo complexo, estranho, e familiar, simples. Sob um falso pretexto de conto de fadas, enreda um texto multiforme cuja ambiguidade dos elementos “organiza” um verdadeiro labirinto de significações. O leitor é convidado a sentir “com a imaginação”, levantar hipóteses, duvidar das imagens e cenas que vai formando mentalmente. Em uma modesta tentativa de adentrar com pés firmes na leitura analítica do conto, esmiuçar seus sentidos muitos, optamos por procurar identificar e comentar as particulares maneiras de elaboração, responsáveis pelo aspecto dúbio desse conto tão instigante e, quiçá, revolucionário.

Com o input típico das narrativas do gênero conto de fadas, era uma vez, o conto anuncia a natureza maravilhosa de seu enredo, o caso de um lugar que continha, ao mesmo tempo, um paraíso e um inferno diminutos; o caráter atemporal do momento coletado, marcado linguisticamente pela predominância (inicial) de verbos na terceira pessoa do pretérito imperfeito do indicativo; e a imprecisão geográfica do espaço que delimita, lugar que sendo plural, é quase sempre acompanhado por artigo indefinido e que aparentemente existiria num plano diverso daquele da realidade empírica. Porém, antes mesmo de chegar ao primeiro ponto final, o narrador, que também esperamos ser o típico do gênero, onisciente neutro, tendo em conta a classificação de Norman Friedman(1), lança mão de um primeiro elemento problemático, estranho à estrutura fixa dos contos de fadas: o pronome oblíquo de primeira pessoa do singular (encontravam-nos, tomavam-nos). Qual é o seu referente? o narrador? o autor implícito(2)? o narrador e o leitor? o pequeno inferno e o pequeno paraíso ganham voz e falam? O certo é que o leitor é convidado a interagir com a fábula, a transportar-se para aquele lugar em que as pessoas eram pequenas, como os seresinhos próprios dos contos de fadas.

Linhas depois, um aparente parênteses: E não devemos malquerer às mitologias assim, porque são das pessoas, e neste assunto de pessoas, amá-las é que é bom. E então a gente ama as mitologias delas. Não pode ser um narrador onisciente neutro quem faz esse comentário professoral, no tom de conselho. Trata-se de um personagem que introduz a si mesmo sem prévio aviso? ou de um narrador outro, intruso, que ri por trás do primeiro? A esse parênteses segue a caracterização do lugar e das pequenas pessoas, rebaixados, como na comédia grega, fracos, assustados, patéticos. E quando o leitor já está sedento por contexto, o narrador, cínico, introduz uma nova reflexão intrusiva: e o que é humano é terrível e possui uma espécie de palpitante e ambígua beleza. E então a gente ama isso, por que a gente é humana, e amar é que é bom, e compreender claro, etc., e abandona o leitor nesse ponto, induzindo-o a debochadamente completar: eu é que não estou compreendendo mais nada. 

A focalização volta-se, na sequência, para a diegese, dá-se um diálogo entre personagens não apresentadas que envereda por prosseguimentos pouco prováveis: posicionamentos políticos, comentários de notícias (jornalísticas?), desabafos pessoais, ideias revolucionárias, trivialidades cotidianas, questões ligadas à família e à morte etc. Cabe ao leitor supor os possíveis ângulos desse foco narrativo: trata-se de uma conversa de loucos entre os dois personagens? o narrador trafega pelo inferno recolhendo fragmentos de diálogos? os diálogos se dão entre os mesmos dois personagens em momentos diferentes, alocados aqui sequencialmente sem recontextualização? novas personagens vão introduzindo outras questões a um diálogo que se transforma em conversa em grupo?

Além disso, outros problemas menores vão sendo introduzidos, como no seguinte fragmento do conto:

é preciso mudar o inferno, cheira mal, cortaram a água, as pessoas ganham pouco – e que fizeram da dignidade humana? As reivindicações são legítimas. Não queremos este inferno. Deem-nos um pequeno paraíso humano. Bom dia, como está? Mal, obrigado. Pois eu ontem estive a falar com ela, e ela disse: sou uma mulher honesta. E eu então fui para o emprego e trabalhei, e agora tenho algum dinheiro, e vou alugar uma casa decente, e o nosso filho há-de ser alguém na vida. E então a gente ama, porque isto é a verdadeira vida, palpita bestialmente ali, isto é que é a realidade, e todos juntos, e abaixo a exploração do homem pelo homem. E era intolerável. Ouvimos dizer que, numa delas, o pequeno inferno começou a aumentar por dentro, e ela pôs-se silenciosa e passava os dias a olhar para as flores, até que elas secavam, e ficava somente a jarra com os caules secos e a água podre. Mas o silêncio tornava-se tão impenetrável que os gritos dos outros, e a solícita ternura, e a piedade em pânico – batiam ali e resvalavam. E então a beleza florescia naquele rosto, uma beleza fria e quieta, e o rosto tinha uma luz especial que vinha de dentro como a luz do deserto, e aquilo não era humano – diziam as pessoas.

Uma interpretação primeira do pronome ela, destacado, é de que o referente é a esposa do personagem que toma a palavra, ou, ao menos, a mãe de seu filho. E aí todas as imagens de mulher sugeridas ganham o rosto dessa personagem feminina. No entanto, não é forçoso interpretar o pronome ela como o anafórico da expressão dignidade humana, possibilitando que as imagens de mulher sejam compreendidas metaforicamente. São vários os jogos de sentido dessa natureza presentes no texto, um labirinto que se adensa como se o narrador estivesse a rir por detrás dos bastidores, sempre “provocando” o leitor virtual(3), crítico e reflexivo.

Alfredo Bosi, em entrevista a respeito da pessoa e obra de Machado de Assis(4), define o narrador cínico como

aquele que vai contando de maneira despachada o que ele fez, porque fez, os pensamentos que ele tinha através dos atos considerados até bondosos, pensamentos egoístas; enfim, tudo aquilo que é, que vai ser a anatomia da miséria humana já está incorporado na voz do narrador, sem que isso produza no narrador sofrimento ou arrependimento. Brás Cubas já morreu, ele começa morto [...] agora ele pode ser descarado, porque não tem mais a cara ou a máscara necessária (BOSI, on line, p.5-6).

O narrador de Herberto Helder vai, da mesma maneira despachada, chamando a atenção para as proximidades entre esse lugar maravilhoso e o lugar real em que vivemos, configurando um pequeno inferno deslocado do mundo factual cada vez mais parecido com a “realidade nossa de todos os dias”, principalmente no que tange às questões ligadas à desigualdade social, e ao “inferninho” português que, disfarçado de “paraisozinho”, vive os anos mais insuportáveis do governo salazarista, quando da publicação do conto, em 1963; tempo em que se prega, aos cochichos e murmúrios, uma revolução, política e social, que ainda terá de aguardar mais de dez anos para chegar às vias de fato. Nessa clave de leitura poderíamos associar, por exemplo, o discurso revolucionário introduzido no diálogo abaixo, outro fragmento do conto, com a tentativa de golpe de Estado dirigida pelo general Botelho Moniz em 1961.

Eu tenho aqui, meus senhores, uma revolução. Desejam examinar? Por este lado, se fazem favor. Aí à direita. Muito bem. Não é uma boa revolução? Bem, compreende... Claro, é uma belíssima revolução. E é barata? Uma revolução barata?! Não, senhores, esta é uma verdadeira revolução. Algumas vidas, alguns sacrifícios, alguns anos, algumas. Um bocado cara. Mas de boa qualidade, isso.

Por outro lado, não podemos esquecer que, ainda que a narrativa possa ser vista como representação literária de um momento histórico, esse narrador pouco confiável e zombeteiro é também “sonambulante”, ao ponto de se fazer esquecer totalmente do tom adotado no primeiro momento, de contos de fadas, articulando outras formas narrativas e dramáticas e deixando de fechar a história com o esperado “e viveram felizes para sempre”. Ou, pelo menos, retomando e fechando o enredo tramado. Como se a reproduzir um sonho, mimetizando um fluxo de consciência, o ritmo e a velocidade do pensamento, o narrador nos põe em contato com uma série de imagens e cenas aparentemente desconexas, que ao longo da leitura vai tornando mais difícil ao leitor estabelecer as relações das partes com o todo.

Exemplo fino do Surrealismo em Portugal, “Lugar, lugares” indica desde o título a pluralidade de lugares e de sentidos que o leitor é convidado a percorrer erraticamente, refazendo a experiência onírica de um narrador sinuoso que desde logo permite-se abandonar a sua longínqua onisciência para mergulhar na diegese, interferir nos diálogos e converter-se em personagem.

Bárbara S. T. da Silva chega a dizer que Os Passos em Volta é construído em torno de uma deambulação particular de diversas vertigens, “uma literatura de diagnóstico psicótico em que a auto-interpretação deriva diretamente da interpretação dos sonhos”(5). Tocando o motivo da viagem de diversas formas, a maior parte dos contos do livro explora um narrador andarilho dos caminhos exteriores e interiores, do mundo e de Portugal, da realidade e da imaginação.

Não compreendo. E julgas tu que eu compreendo? Quem pode compreender?. Esse fragmento de diálogo disposto quase no meio da narrativa sintetiza a matéria do conto. Com uma ironia fina, o narrador convida o leitor a rir junto com ele; não um riso cômico (eufórico), mas um riso humorístico (disfórico). No mais, prefiro interromper esta breve análise por aqui. Não se trata mesmo de um conto para solucionar e destrinchar. É, sim, uma obra para se apreender/ compreender pelos sentidos.



 
(1) FRIEDMAN, Norman. “O ponto de vista na ficção: o desenvolvimento de um conceito crítico”. Trad. de Fábio Fonseca de Melo. In: Revista USP. n.53, p.166-82, março/maio, 2002.
(2) O termo é de BOOTH, Wayner C. “Distance et point de vue”. Poétique 4. Paris: Seuil, 1977, para apontar a imagem do autor ontológico que é elaborada textualmente.
(3) Trata-se do leitor ficcional, implícito no texto, na definição de FERNANDES, Ronaldo Costa. O narrador de romance: e outras considerações sobre o romance. Rio de Janeiro: Sette Letras, 1996.
(5) Texto de apresentação do autor e obra organizado pelo CITI (Centro de Interação para Tecnologias Interativas), Disponível em: http://www.citi.pt/cultura/literatura/poesia/helder/index.html




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