O milagre segundo Salomé (1975), de José Rodrigues Miguéis


Concluído em 1970 e mantido na gaveta pela PIDE até a Revolução dos Cravos, o romance português O milagre segundo Salomé lê o milagre de Fátima, ocorrido em 1917, como atilho da Ditadura Militar, além de retratar o cenário social de Lisboa entre 1882 e 1926, usando a complicada vida amorosa da prostituta Salomé para expor aquelas ideias militantes contra-Salazar, que Eduardo Lourenço chama de "uma cultura oficial de tendência marxista que não sobreviveu ao 25 de Abril". No romance, Salomé é a senhora toda vestida de branco vista pelos modestos pastorinhos durante a tempestade, engano feito negócio provedor do primeiro golpe à República: os burgueses encheram os bolsos, os militares conseguiram o apoio popular e o clero retomou sua posição de prestígio. Eis a denúncia militante de José Rodrigues Miguéis.

O texto tem um sabor estilístico peculiar dentro da geração “neo-realista”, uma preocupação ética faz autor atribuir nomes fictícios a pessoas públicas e lugares (os subsequentes ministros são apelidados de General ABC, e o milagre não ocorre em Cova de Iria, mas em Meca), suprimir datas (em nenhum momento se diz, por exemplo, que o milagre ocorreu em 1917) e alterar o gênio do narrador em conformidade com a perspectiva do personagem, técnica visível desde as primeiras páginas. No primeiro retrospecto, “Onde trinta anos vagarosos passam depressa”, é com uma linguagem arcaizante, bem ao gosto de Camilo, que o narrador em terceira pessoa saboreia a assustadora viagem de trem do inocente Severino, futuro amante de Salomé, desde Vilarinho da Serra (aldeinha do município de Boticas) até Lisboa.     

Tinha dezasseis anos, e a sombra dum buço na carantonha lorpa, talhada a enxó na matéria-prima de que ao tempo se faziam marçanos, conselheiros, deputados e bispos, quando, à beira já da diligência do côto, que havia de o levar a Coimbra, beijou derradeiramente, em lágrimas e ranhos, a máscara seca e rugosa da mãe.

Posteriormente, é com uma forma escrita direta, ágil e acessível que descreve a nova vida de Severino na cidade, o trabalho que irá lhe garantir a fortuna. 

Com a estabilidade e a barriga cheia (essa a maior novidade), Severino aumentou de peso, e a carantonha luzente de gordura e saúde ganhou-lhe expressão menos desconfiada e boçal. Tinha nos olhos uma vivacidade que alterava entre humilde e curiosa. Mas nada lhe escapava. Daquele sono reparador de adolescente, no comboio, que fora como o biombo lançado entre o passado e o futuro, acordara sozinho neste outro mundo, e não encontrara o homem que o devia levar ao senhor Pires: um destes incidentes obscuros que agulham o curso da existência individual para carris de imprevistos destinos. Isso era-lhe indiferente, pois sabia que o trabalho era o seu quinhão na vida, e que só podia contar com a força dos braços.

Inclusive as ideias marxistas são atribuídas a um personagem, o Arcanjo Gabriel, por quem Salomé acabará se apaixonando.

O sol da tarde resplandece no castelo impassível, cor de oca e ferrugem, onde flutua sempre uma bandeira preguiçosa. Olhando de fora esta multidão coloidal que adere às esquinas e às fechadas, num calmo exterior de alameda provinciana, ninguém diria que por baixo disto tudo corre um tumulto de lava que pode arrastar-nos e subverter-nos a todos. Uma tropa de ingleses carregados de sacos de golfe passa a caminho do palace, e olha com espanto esta gente morena e apoquentada que parece tomar a vida a sério ou esperar sempre um milagre que a salve, outras índias, brasis, um novo Dom Sebastião ou um terremoto. A atmosfera, com efeito, não é a dos bons tempos. Não há os gritos, os vivas e morras, a esperança, os pugilatos de há pouco. [...] Chega a parecer suspeito, um silêncio assim.

Imitando, portanto, o ponto de vista do personagem, maquinalmente, o autor deixa a cargo do leitor a construção do sentido crítico de suas páginas, a percepção do tom irônico e herético daquele discurso mutante. Há, inclusive, uma “Nota do autor” ao final do livro, que reforça o teor fictício do texto:

O milagre segundo Salomé não é um romance histórico: não pretende reconstituir factos ou acontecimentos nem evocar pessoas cuja realidade ou verdade será apenas a que uns e outras assumirem aos olhos do leitor; e os que se inspiram da realidade aparecem aqui transpostos, anacronizados, telescopados ou conjugados seguindo as conveniências da narrativa (p. 368). Qualquer semelhança entre este ‘milagre’ e algum milagre do mundo não ficcional, deve-se apenas a uma assimilação lógica ou formal, e não ao desejo de fazer proselitismo ou de rebater o segundo [...]. Trata-se tão somente da figuração simbólica de uma época, ambiente e estado de espírito coletivo.


 

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