O milagre segundo Salomé é o primeiro longa-metragem de Mário Barroso, à altura já bastante conhecido por seu trabalho como diretor de fotografia, colaborador dos nomes de peso do cinema português, Manoel de Oliveira e João César Monteiro, como também experiente em televisão e filmes populares. A expectativa em torno desse longa era, portanto, a tão esperada conciliação entre arte e indústria cinematográfica, principalmente depois de se ter anunciado que o filme abordaria o milagre de Fátima a partir do livro “maldito” – anticlerical por excelência – que questionou sua autenticidade[¹]. O projeto original era uma minissérie colada na realidade do livro, uma superprodução, como será mais tarde a minissérie televisiva Equador, baseada no romance de Miguel de Sousa Tavares, mas por conta dos modestos recursos de produção, foi preciso sintetizar o enredo, centralizar o tempo da narrativa, reduzir as cenas de exteriores e condensar o elenco. O resultado foi uma obra áudio-visual que conseguiu integrar o discurso do romance ao seu próprio universo, apresentando um cinema que vem "como que volver-se na mente do leitor, em categoria heurística", como diria Sérgio Guimarães de Sousa[²] por entender que a adaptação cinematográfica é "um instrumento a serviço da busca e da indagação, uma perspectiva crítica suplementar para se abordar o texto literário de um modo inteligente e sensível".
O tempo é concentrado no ano de 1917 e o passado dos personagens meramente sugerido em diálogos e por brevíssimos flash-backs. Isso acaba por reforçar a anacronia que Miguéis constrói com sutileza. O milagre não é transportado para Meca, mas parece ocorrer em Cova da Iria, por conta da construção da cena, muito semelhante à descrição dos pastorinhos, e com Salomé vestida à maneira das Virgens das Procissões. Muitos deles renomeados, os personagens precisam dar conta não apenas das suas funções originais, como acumular características da época outrora desenvolvidas por meio de outras figuras. Por isso elas se tornam mais complexas e ambíguas do que já eram no texto literário. Salomé não é mais a prostituta álgida que sustenta o sonho de ter uma família e um homem a quem ame, mesmo na pobreza, mas uma moça vivaz e impulsiva, religiosa e mundana ao mesmo tempo (como, aliás, o narrador do livro diz ser todas as prostitutas), que ainda assim abandona o amante banqueiro para viver com o jornalista Gabriel; Severino (aqui chamado de Cerqueira) não é o homem solitário e cegamente apaixonado por Salomé, mas um capitalista típico, atento aos benefícios e riscos de suas transações comerciais, inclusive as de cunho amoroso; Gabriel, o jornalista militante, não se apaixona pela Salomé prostituta de rua, mas pela Salomé senhora da alta sociedade. É o próprio Mário Barroso quem dá corpo a uma figura pouco trabalhada no romance, mas centro de sua crítica: o bispo. Mesmo na República, ele circula na alta-roda e tem participação ativa no projeto de exploração do milagre.
A santa vistas pelos três pastorinhos em 1917 é Salomé, a deslumbrante companheira do principal banqueiro do Império resolve visitar sua aldeia natal e acaba sendo confundida com uma santa pelos pastorinhos da região. Rapidamente, o milagre se transforma na atração turística que irá custear a Ditadura Militar. A união conveniente dos três poderes em prol dos benefícios próprios, ainda que ela contribua para a alienação da grande massa populacional. A religiosidade característica dos povos peninsulares empregada como ferramenta de religação entre as várias camadas da sociedade, que já não se sentiam mais em comunidade. Enquanto Miguéis se esforça em legitimar sua leitura dos fatos de 1917 reforçando o teor ficcional de sua narrativa, Barroso denuncia abertamente o milagre de Fátima, ao ponto de conduzir seu texto para um final completamente diferente do desfecho do livro. Porém, seu narrador câmera também procura se manter neutro, se para Gabriel o milagre é uma farsa aproveitada para encher os bolsos de banqueiros e promover a ditadura, para Salomé seu corpo foi canal para aparição da santa, se Salomé é uma prostituta sagaz para o Deputado Mota Santos, é um anjo em gente para o Tenente Brás. Também a exuberância da fotografia, marcada pelo excesso de cores quentes e pelos enquadramentos muito bem selecionados, e a delicadeza da trilha sonora, composta por valsas para quarteto de cordas (viola, violino e violoncelo) executadas pela Sinfônica de Lisboa, reforçam o ritmo confortável de melodrama de época.
Sem prejudicar a história de amor desenvolvida bem ao gosto popular, Mário Barroso aproveita a polêmica despertada pela leitura de Miguéis do milagre de Fátima não para discutir o fracasso da Primeira República, mas para destacar uma permanência na história portuguesa. “Os políticos de costume, os financeiros de costume, os amigos da ordem de costume”, é com muita atualidade que o filme denuncia a corrupção do estado (na figura do Deputado Mota Santos), da igreja (no bispo Mário Barroso) e da burguesia (no banqueiro Cerqueira), unidos no propósito de lucrar com a fé (e, por que não dizer ingenuidade) da população.
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